IV DOMINGO DA QUARESMA – ANO B






DEUS NOS AMA!       Jo 3,14-21


                Hoje é o domingo chamado Laetare, isto é, da alegria. Por isso, no salmo responsorial repetimos juntos estas palavras cheias de doçura: “A Tua lembrança, Senhor, é a nossa alegria”.
                Como fará a liturgia para inculcar-nos hoje a alegria? Ou antes, é possível “inculcar” a alegria? A liturgia escolheu o caminho exato: simplesmente colocou diante de nós o motivo da nossa alegria: Deus nos ama!
                Segunda leitura: Deus, rico de misericórdia, amou-nos com um grande amor, por isso, de mortos que estávamos, fez-nos reviver em Cristo.
                Evangelho: “De tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único.”
                Queremos hoje agarrar esta ocasião única que se nos oferece de meditar sobre o amor de Deus, que é a alma de toda a Bíblia, a risco de deixar na sombra outros temas presentes na Palavra de Deus (que, contudo, reaparecem no tema que escolhemos).  Deus nos ama! É a proposição mais simples que se possa imaginar – um sujeito, um objeto, um verbo -, e contém o mais vasto pensamento que  o homem possa conceber: Deus e o homem e, entre eles, amor!
                O amor de Deus é uma realidade única, indivisível, como o é o próprio Deus. Todavia, Ele se revelou a nós concretamente, numa sucessão de gestos e de intervenções que se chama “história da salvação”. Podemos, por isso, reconstruir o desenrolar-se do amor de Deus por nós.
                A primeira etapa nos reporta a antes do tempo e da história, à própria eternidade de Deus, e soa assim: “Deus é amor” (I Jo 4,8); é-o em Si mesmo, anteriormente ao conhecimento que disso pode ter a criatura. Aparentemente, nessa fase, estamos ausentes: Deus não tem o que amar, a não ser a Si mesmo. Sabemos que Deus, embora sendo único, não é solitário, nem mesmo na fase que precede a criação. De fato, tem Consigo a Seu Filho, Sua imagem perfeita, a quem ama e por quem é amado com um amor tão forte a ponto de constituir uma terceira Pessoa: o Espírito Santo. Portanto existe já o amor em Deus, mas um amor incriado, trinitário, inacessível.
                Contudo, nós não estávamos nem ausentes nem desconhecidos a Deus, nem mesmo então: “E nos escolheu nele antes da criação do mundo” (Ef 1,4). Estávamos já contidos e contemplados no Seu amor, como criaturas ainda escondidas no seio e no pensamento dAquele que há de gerá-las e espera que venham à luz.
               
                Segunda etapa: a criação. A criação é a revelação desse amor oculto, o primeiro e fundamental ato de amor de Deus para com as criaturas; aquele que lhes dá o ser e o existir. Podemos compará-lo – mas aqui toda comparação é pobre – ao amor de duas criaturas no ato pelo qual geram uma nova vida.
                A criação é um ato de amor. A liturgia, interpretando o pensamento teológico de todo o cristianismo, canta no cânon IV da missa: “Fizestes todas as coisas para cobrir de bênçãos as Vossas criaturas e a muitos alegrar com a Vossa luz”. Deus cria para derramar Seu amor, porque o bem é diffusivum sui: tem necessidade de se difundir, de se manifestar. Não bastava a Deus amar-se a Si mesmo; queria amar alguém e ser amado em retorno por esse alguém que estivesse Dora dEle e para quem o amor revestisse um caráter novo: o de ser livre e gratuito (o que não poderia ser o amor trinitário). Se, se questiona, religiosamente, qual á a realidade última do homem, onde o encontra a sua consistência, descobre-se que ele é um pensamento do amor de Deus externado e revestido de carne.
                Esse amor de Deus encontra nos profetas os seus cantores insuperados. Deus deu a alguns homens (como Isaías, Jeremias, Oséias) um coração imenso, cheio de recursos, sensível a toda sorte de amor, para que revelassem aos homens um pouquinho do Seu insondável amor. Fizeram o possível; recorreram às mais fortes imagens que conheciam: o amor de um pai e de uma mãe por sua própria criatura (Is 1,2: “Eu criei filhos e os eduquei”; 49,15-16: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca”; Os 11,4: “Segurava-os com laços humanos, com laços de amor; fui para eles como o que tira da boca uma rédea, e lhes dei alimento”); o amor de um namorado pela sua  namorada e o de um homem pela sua mulher (Is 62,5ss: “Assim como um jovem desposa uma jovem, aquele que te tiver construído te desposará; e como a recém-casada faz a alegria de seu marido, tu farás a alegria de teu Deus”; cf. também Jr 2,2; 31,21s; Ez 16,8ss; Os 2,21).
                É um amor eterno, indefectível (Jr 31,3: “Amo-te com eterno amor”), mas sabe assumir também tonalidades tempestuosas, como todo verdadeiro amor quando é ameaçado. É um amor que faz comover o coração de Deus ante a desgraça que o homem, por si só, buscou (cf. v. 20); é um amor zeloso que não tolera rivais. Aqui se fundamenta a implacável guerra contra os deuses estrangeiros, contra os ídolos e cultos secundários erigidos em deus: “O Senhor vosso Deus é um fogo devorador, um Deus zeloso” (Dt 4,24).
                Essas são características conhecidas também no amor humano, aliás dele deduzidas e aplicadas a Deus somente por analogia (já que Deus não está sujeito, evidentemente, a paixões). Há, ao invés, um aspecto que é exclusivo do amor de Deus: a gratuidade. Todo amor humano, mesmo aquele que aparentemente não tem qualquer interesse próprio, como o da mãe ou o do apaixonado, é, na realidade, egoísta e tem um aspecto de busca de si mesmo. O homem, na verdade, realiza-se amando, encontra no amar a sua felicidade; Deus, amando, não se realiza, mas realiza. Seu amor é pura graça, de um modo para nós inconcebível.

                Terceira etapa, que dá cumprimento a todas as anteriores: “De tal modo Deus amou o mundo, que lhe seu Filho único”. A terceira etapa do amor de Deus se chama, então, Jesus Cristo. Jesus é o amor de Deus feito carne; é a manifestação tangível do amor do Pai: “Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: em nos ter enviado ao mundo o seu Filho único” (I Jo 4,9).
                Mas Jesus não se contentou com ser somente a prova, a objetivação do amor de Deus para com os homens; Ele nos amou, por Sua vez, com um amor divino e humano, porque era Deus e homem; o amor de Deus nEle também  se fez subjetivo: “Como o Pai me ama, assim também eu vos amo” (Jo 15,9); “Chamei-vos amigos” (v. 15); “A caridade de Cristo [por nós] [...] desafia todo o conhecimento” (Ef 3,19).
                Em Jesus, o amor de Deus deixou-se adequar à nossa condição humana, que tem necessidade de ver, de ouvir, de tocar, de dialogar. Sic Deus dilexit: enfim sabemos como Deus ama! O amor de Jesus pelos homens é forte, viril, terníssimo, constante, até à suprema prova da vida. Porque ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pela pessoa amada (cf. Jo 15,13). E Ele deu a vida! Amor cheio de tato e de calor humano: como ama as mulheres, com que delicadeza se lhes aproxima na humilhação delas, sem, contudo, qualquer leve sinal de condescendência com o mal! Como ama os discípulos; como ama as criancinhas, os doentes, os pobres, os intocáveis da época (“gente da terra”, como eram os chamados)! Amando, Ele muda, faz crescer, liberta (a Samaritana, a Madalena). Diante do túmulo de Lázaro, disseram dEle: “Como ele o amava!” (Jo 11,36).
               
                A quarta etapa do amor de Deus (e da história da salvação), aquela que nos traz até nossos dias, chama-se Espírito Santo. O amor de Deus que se manifestou em Cristo Jesus, permanece entre os homens e vivifica a Igreja através do Espírito Santo.
                Que é, de fato, o Espírito Santo? É aquele amor recíproco entre o Pai e o Filho, que, após a ressurreição, se difundiu sobre os fiéis, como perfume que emana do vaso de alabastro partido e inunda a casa: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5); “Nisto é que conhecemos que estamos nele e ele em nós, por ele nos ter dado o seu Espírito” (I Jo 4,13).
                Sem o dom do Espírito Santo, a grande prova de amor de Deus, que foi Jesus Cristo, teria ficado apenas como uma recordação histórica, cada vez mais esmaecida à medida que passavam os séculos. O Espírito Santo faz desse amor uma realidade atual, de hoje, de sempre. Também nisso – aliás, sobretudo nisso – o Espírito Santo é a memória viva de Jesus.
                Não se trata de um amor subjetivo, isto é, de um sentimento fugaz; é algo de soberanamente objetivo e concreto. É precisamente uma Pessoa. No Novo Testamento é-nos apresentado como o Consolador, Àquele que dá paz, força, coragem, alívio. É Espírito de amor. É também chamado o “coração novo”, o “coração de carne”, porque a Sua presença não só nos torna amados, mas também capazes de amar (amar de um modo novo a Deus e aos irmãos). Ele é agora Aquele que realiza a impossível fidelidade do homem; com Ele presente, de fato, o crente pode observar os mandamentos, pode corresponder ao amor de Deus, o que não era possível antes de Cristo.
                Eis, esquematicamente, a revelação do amor de Deus pelo homem, o seu lento desdobrar-se na história, até ao hoje da Igreja. Que responderemos? Que diremos? Há várias reações possíveis: uma é aquela que São Boaventura exprime assim: “Sic nos amantem quis non redamaret?” [Quem não amaria em retorno a quem assim nos ama?]; a contrapartida: amar em retorno a Deus que nos amou! Mas deixamos passar essa perspectiva. A segunda reação é aquela expressa por São João: “Se Deus assim nos amou, também nós nos devemos amar uns aos outros” (I Jo 4,11); mas nós  deixamos passar também essa perspectiva.
                Existe algo que vem antes de tudo isso, e é o próprio João que no-lo sugere: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco” (v. 16). Coisa extraordinária e entre as mais difíceis do mundo! Poucos são aqueles que podem repetir essa frase com sinceridade.
                O mundo torna cada vez mais difícil acreditar no amor. São muitas as traições, muitas as desilusões. Quem foi traído ou ferido uma vez, tem medo de amar e de ser amado, porque sabe quanto faz mal o desengano. Nas relações para com Deus, então, há aquela terrível objeção que é a existência da dor e, em particular, da dor dos inocentes. Falamos disso há duas semanas. E assim vão cada vez mais engrossando as fileiras daqueles que não conseguem acreditar no amor de Deus, antes, em amor nenhum. O mundo e a vida entram – ou continuam – num período glacial, porque sem a fé em que Deus nos ama, o homem parece, como já se disse, “uma paixão inútil” (Sartre). Os cientistas recolhem as palavras dos filósofos e falam do mundo como de um “formigueiro que desaba” (J. Rostand): um nada que se perde no vazio do frio cósmico. Tudo está destinado a reentrar no silêncio, e o homem não é senão um desenho criado pelas ondas na praia, que a onda seguinte apaga.
                O cristão deve rasgar esse véu que tenta sempre cobrir a terra. É a sua vocação. Pode fazê-lo, porque não é ele que deve inventar, com a sua inteligência ou com a sua fantasia, o amor, pois este, por ocasião do batismo, lhe foi infundido no coração; deve apenas descobri-lo dentro de si e na Igreja e testemunhá-lo ao mundo.
                É um momento decisivo na história da salvação aquele em que uma pessoa, ou melhor, ainda, uma comunidade, movida pelo Espírito Santo, diz, como o fazemos agora: “Deus nos ama, e nós cremos no amor!” 

                 

                                             Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       




 
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